Por Barbara Howard e Giulia Afiune
O movimento MeToo tem motivado muitas mulheres famosas – como Uma Thurman, Megyn Kelly, e Reese Witherspoon – a denunciar casos de violência sexual. Mas e as mulheres que sofrem abuso e assédio longe dos holofotes, como as faxineiras e as babás que trabalham em casas de família?
Muitas trabalhadoras domésticas vivem de forma irregular nos Estados Unidos, e por causa de seu status imigratório, frequentemente têm medo de recorrer à polícia. Muitas sofrem em silêncio.
No entanto, Luna foi à polícia. Luna foi o nome fictício que essa trabalhadora doméstica brasileira escolheu para poder contar sua história e proteger a privacidade de sua família. Imigrante sem documentos, ela mora com seu marido e a filha de 5 anos do casal em um pequeno apartamento na Grande Boston.
Foi lá que nos encontramos com Luna. Sentadas no chão do quarto da filha, Luna e a menina brincavam de boneca. As histórias eram narradas em uma mistura de português e inglês.
Mais tarde, longe da filha, Luna conta sua própria história.
Tudo aconteceu durante uma tempestade de neve em 2004. Na época, ela e o marido moravam em Brighton. Ela se lembra que seu chefe – o dono da empresa de limpeza doméstica para qual trabalhava – ligou e disse que iria buscá-la para limparem uma casa em Newton. Assim que chegaram na casa, eles começaram o serviço. Então, ele a chamou para limpar o quarto no segundo andar. Quando ela entrou, ele fechou a porta.
“Quando eu virei, ele já estava quase sem roupa. Ele me jogou no chão, me virou e começou a puxar a minha calça, só que ele não conseguia fazer tudo que ele precisava. Aí ele começou a me bater e eu comecei a gritar. Eu não sabia o que fazer. Foi muito rápido,” ela lembra.
Luna conta que, enquanto lutava contra o homem, ele a chutava e a arranhava. Eventualmente, ela conseguiu golpeá-lo e engatinhou até o banheiro, onde se trancou. Ele a seguiu e permaneceu do lado de fora.
“Quando eu me dei conta do que ele queria fazer, eu me ajoelhei e pedi a Deus que me desse calma, força e uma recompensa: poder sair dali viva,” Luna conta. “E eu me limpei, porque eu me sentia suja, horrível.”
Ela conta que o agressor continuava batendo na porta, exigindo que ela terminasse de limpar a casa, e dizendo que ela não era paga para chorar no banheiro. Levou algum tempo até que decidisse destrancar a porta e descer para continuar a faxina. Enquanto esfregava o chão da cozinha, Luna sentia que ele estava a observando. E ela jamais esqueceu o que ele disse naquele momento.
“Ele falou: ‘Se você quer viver, se você quer ter uma vida normal, fecha a sua boca e não conte isso para ninguém. Você é uma imigrante. Você não tem documentos. Você não fala inglês. Se você contar alguma coisa do que aconteceu aqui, eu vou entregar você na imigração. Você e o seu marido vão ser presos e deportados,’” relata.
Ele atingiu seu ponto fraco. A deportação era um dos maiores medos de Luna. E ela não está sozinha.
Em Massachusetts, a maioria dos faxineiros é estrangeira. Aqueles que não possuem documentos têm medo de denunciar casos de abuso. E muitos não têm o domínio da língua necessário para ir à polícia. Por isso é difícil estimar o número de trabalhadores domésticos que sofrem assédio sexual.
“Isso acontece todos os dias, mas em grande parte dos casos, nós não ficamos sabendo,” diz a jamaicana Angella Foster, que trabalhou durante anos como babá e atualmente orienta trabalhadoras domésticas no Centro de Mulheres Trabalhadoras Matahari (Matahari Women Workers’ Center) em Boston. Foster diz que, em seu trabalho, frequentemente ouve histórias de mulheres que trabalham de forma isolada: a situação perfeita para abusos.
“Você está sozinha numa casa. As crianças estão na escola, a mãe saiu de casa, o pai volta para casa no meio do dia, você fica sozinha com o pai. Está aí uma situação perfeita,” exemplifica Foster.
O patrão de Luna também continuou tentando criar a oportunidade perfeita para ficar sozinho com ela em um quarto ou dentro de seu carro. Por quase um ano ela conseguiu evitá-lo. Ela tinha contas para pagar e não conseguia contar o que estava acontecendo para ninguém, nem mesmo para o seu marido.
“Eu fiquei quieta. Até então eu não sabia nada sobre as leis. Eu não conhecia nada,” diz.
Ela estava prestes a descobrir. Eventualmente, seu patrão a demitiu. Foi só nesse momento que ela teve coragem de denunciá-lo à polícia e contar tudo ao marido.
O agressor foi preso temporariamente, mas não respondeu a um processo criminal. Em vez disso, com a ajuda de um advogado, Luna levou seu caso à Comissão Antidiscriminação de Massachusetts (Massachusetts Commission Against Discrimination, MCAD). Após uma investigação, a MCAD decidiu que o patrão poderia ser responsabilizado e ordenou que ele pagasse uma indenização a Luna.
Desde então, a Carta de Direitos dos Trabalhadores Domésticos (Domestic Workers’ Bill of Rights) se tornou lei em Massachusetts. Graças à nova lei, atualmente todos os trabalhadores domésticos – incluindo aqueles que trabalham de forma independente ou para pequenas empresas e aqueles não possuem documentos – podem denunciar à MCAD casos de assédio e abuso sexual cometidos por seu empregador.
No caso de Luna, sua coragem pode ainda lhe trazer benefícios. Já que denunciou o ataque, agora ela pode solicitar o visto U, opção reservada a vítimas de certos crimes que cooperam com as autoridades.
Ao refletir sobre o passado, Luna se sente feliz por ter tomado uma posição e se diz encorajada a falar sobre o que aconteceu. “Nós temos que falar muito alto para que todo o mundo nos escute. As mulheres e as crianças não podem ser abusadas, violentadas como se fosse…normal? Como meu agressor falou enquanto ele me atacava, ‘Isso é normal,’” diz Luna. “Não, isso não é normal.”
A filha de Luna ainda não sabe o que aconteceu com a mãe. Luna prefere que a menina continue acreditando em contos de fadas até que ela tenha idade suficiente para ouvir a história de quando sua mãe lutou por seus direitos e conseguiu, pelo menos, um pouco de justiça.
Esta reportagem foi apurada e produzida por Giulia Afiune, que também a traduziu para o português para o nosso site www.wgbhnews.org. A narração é de Barbara Howard, âncora do programa All Things Considered.